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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Música, Poesia e Pancadaria


Música, Poesia e Pancadaria 

Em meados da década de 60 fiz parte de um grupo de estudantes paulistas, que viajou para o sul do país em excursão ... naqueles tempos uma jovenzinha recém saída da faculdade ... e em dois ônibus cerca de 60 jovens alegres e barulhentos saíram da Rua Maria Antônia, antiga sede da Filosofia e Ciência e Letras da USP rumo ao sonho de cruzar a fronteira e alcançar a Argentina através da foz do Rio da Prata. A ideia era atingir o extremo sul, atravessar a fronteira, conhecer Montevidéu e através da foz do Rio da Prata alcançar a Argentina até Buenos Aires. 
Ao chegar na divisa, um problema. Não podíamos passar, pois o país vizinho estava em "estado de sítio" e havia fechado a fronteira. Enquanto os organizadores da excursão (dois colegas da Física) tentavam resolver a questão junto às autoridades uruguaias, ficamos em uma das cidades da divisa, alojados em uma escola, pois era período de férias. Durante três dias passamos por algumas experiências que ficaram na minha memória . 
Estudantes sitiados em uma cidade da divisa, estranhamente vazia. Na cidade não se via mulher alguma em nenhum lugar. As lojas e bares fechados. As casas de estilo colonial mantinham as portas abertas, mas olhando-se para dentro não se conseguia ver ninguém nenhum ruído de rotina familiar. Parece que toda a vida da cidade se cristalizara em outro tempo e espaço. 
Acostumados com o barulho intenso da cidade grande os estudantes não podiam entender o que ocorria. Onde estariam as pessoas da cidade e o porquê de tanto silêncio. Pairava um clima de desconfiança e perigo no ar.
Um estanceiro rico, talvez lembrando-se de seus tempos de juventude, resolveu recepcionar os estudantes com um churrasco típico em um dos bares da cidade. Tudo a portas fechadas. 
Alí, os jovens conheceram a única mulher que viram na cidade: a mulher do dono do bar e que era paulista. 
A noite estava belíssima, o churrasco magnífico e o vinho farto e generoso. 
De repente criou-se um clima de magia e encantamento. O dono do bar apareceu como que trajado para uma festa a rigor, magro e moreno como um toureiro espanhol e emocionado começou a declamar em castelhano. Os mais lindos versos de Neruda brotavam como cascata de luz e um ambiente de sonho acompanhava a emoção do artista. Seus olhos brilhavam como se estivesse com febre e o timbre de sua voz acompanhava o seu momento de glória. Um poeta perdido nos confins do Brasil em uma oportunidade talvez única de sua vida, de mostrar o seu talento de intérprete. 
"Puedo escribir los bersos mas tristes esta noche" declamava o poeta. Os estudantes entoavam em coro: " a estrela Dalva no céu se esconde ... e a lua anda tonta com tamanho esplendor" ...."me gustas quando calas porque estás como distante, distante e dolorosa como se hubieras muerto" declamava o poeta e, no contraponto respondiam os jovens:  "as pastorinhas para o consolo da lua, vão cantando na rua ... lindos versos de amor". 
Festa acabada, permaneceram apenas alguns poucos querendo prolongar a magica noitada. 
No dia seguinte, veio então a triste notícia: um grupo de jovens fazendeiros feridos em, seu amor-próprio por não terem sido convidados para a festa, resolveram fazer valer seus direitos de senhores feudais. Invadiram o bar, e quebraram tudo: mesas, copos, garrafas. Encheram de pancada o infeliz poeta, apagando para sempre, talvez, a estrela que ousara brilhar fazendo resplandecer o brilho verdadeiro da poesia e das emoções plenas. 
Como se dissessem: Aqui só nós podemos ser. Não há lugar para poetas nas fronteiras do poder !


* Felizmente nossa autorização foi concedida e rapidamente atravessamos a divisa, no caso, uma ponte(rs) rumo ao Uruguai.
Nota:Já estávamos na época da ditadura.


Guaraciaba Perides (2012) 


12 comentários:

  1. Muito interessante o seu relato, Guaraciaba... Uma pena esse desfecho. Épocas de repressão, tempos difíceis, mas sem dúvida alguma, uma atmosfera mui propícia para a inspiração de belíssimos poemas. Abraço amigo, obrigado pela oportunidade de comentar e pelo privilégio de compartilhar conosco - leitores do blog - essa epopéia, por assim dizer, por terras sulamericanas... Cuide-se bem.

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  2. Que maravilha estas tuas memórias.
    Adorei ler. Pena que textos como
    este não são mais publicados.
    Continua, minha irmã.

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  3. Ola querida amiga,que acontecimento memorável para ter no baú de histórias de tua vida.Posso até imaginar o dono de bar declamando suas belas poesias e os estudantes entoando a beleza desta grande canção Estrela Dalva.Realmente deve ter sido uma noite mágica.Que felicidade ter-se momentos inolvidáveis como este para recordar.......Beijus...SU

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  4. OI GUARACIABA!
    LEGAL ESTE TEU RELATO, DE UMA ÉPOCA EM QUE A DITADURA JÁ IMPERAVA.
    FIQUEI CURIOSA PARA SABER QUE CIDADE ERA ESTA.
    COITADO DO POETA TEVE A SUA NOITE DE GLÓRIA, MAS, PAGOU CARO POR ISTO.
    ABRÇS

    zilanicelia.blogspot.com.br/
    Click AQUI

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  5. Que história!
    Linda tua maneira de desenhar com as palavras! Beleza e tristeza invadiram minha mente, querida.
    Bj

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  6. Uma história que o tempo não vai apagar de sua memória. Um relato que deveria acompanhar a história de nossas vidas.
    Linda a história e a forma doce e poética como foi contada....

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  7. Guará querida,

    Memorias de ouro. Eu teria vivido cada momento das declamações do anfitrião...

    BjsMeus
    Cat

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    1. Os versos de amor de Neruda foram a minha paixão de juventude.naquele contexto ficaram mágicos no contraponto com as Pastorinhas.Não sei se o pessoal do grupo sentiu do mesmo modo...
      Um abraço e obrigado pelos comentários de todos.

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  8. Guaraciaba, que memórias belas
    e ao mesmo tempo insólitas. Parabéns.
    Excelentes também sua participação
    e seu comentário aos poemas do nosso Bestiário.
    Abraços.

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  9. Guaraciaba,
    Muito obrigada por partilhar connosco essa lembrança. Foi um momento de magia partilhado com esse habitante de uma cidade quase perdida. Os versos declamados tornam-se ainda mais belos quando se lê o que sucedeu depois. Existe sempre quem use de violência contra a pureza dos versos. No entanto, essa atitude só incentiva a continuar a lutar com poesia e sorrisos.
    Um abraço.

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  10. Boa tarde amiga, vim agradecer por sua amavel visita no meu cantinho. muito obrigada!
    tenha uma linda tarde abraço amigo
    maria Alice

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  11. Olá, Guaraciba,
    retornei da minha "pausa" e já estou "arruando" e encontrando maravilhas. Naqueles anos, chamados de "chumbo" aconteciam coisas inimagináveis. Valeu como experiência e mais ainda pelo relembrar...
    Antes de ler a rica crônica (regada à Pastorinhas e Neruda), fui clicando para trás, passando (e me deliciando) por Amor Bendito, Eu sou um Rei, Pelos caminhos...perdidos, Física Quântica, Busca de Julieta, deixando para escrever aqui. Gosto dessa forma criativa de "entrelaçar" o tema de um vídeo (música ou filme) com uma poesia.
    Sendo eu sua contemporânea e gostando de poesia, cinema e outras formas de Arte, (além de saudável saudosista) identifico-me nesses Sonhos e Reflexões. Foi bom rever tanta coisa, com uma roupagem tão "personalizada" pela Guaraciaba.

    Um forte abraço,
    da Lúcia

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