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sábado, 8 de novembro de 2014

CASO DO VESTIDO ( Carlos Drummond de Andrade)

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido , nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe.
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado
se perdeu tanto de nós,

Se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne
bebeu, brigou, me bateu

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.

Dava apólice , fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia  seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só para lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para o vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei...disse que sim.

Saí pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pai sumiu nos mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me apareceu já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou esse vestido.

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago a minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede  graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela criaturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta de estrada

vosso pai aparecia.
Olhou para mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há...nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.






Carlos Drummond de Andrade ( Antologia Poética)- CASO DO VESTIDO



A música de  Chico César   a "DONA DO DOM"  com Maria Bethania


Duas Mulheres...as duas faces da mesma moeda?

16 comentários:

  1. OI GUARACIABA!
    NÃO CONHECIA ESTE TEXTO DO DRUMOND DE ANDRADE, ENTÃO PARA MIM VALEU MUITO, TANTO POR PODER CONHECÊ-LO, QUANTO PELA BELEZA QUE TRÁS.
    PARABÉNS AMIGA.
    ABRÇS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

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  2. Oi, Zilani...eu o coloquei justamente por isso, é pouco conhecido, impactante e nos leva à reflexão da condição feminina...que bom que você gostou.
    Um abraço

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  3. Olá! Reconheci nos primeiros versos que se tratava de Drummond. Adoro. abraços

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    1. Oi, Ives...é verdade, existem alguns poemas que ficam mais marcados e em geral são os mais conhecidos e existem alguns que foram pouco publicados...este eu encontrei em uma Antologia e achei bem interessante. .
      Um abraço

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  4. Un maravilloso Texto de Drummond de Andrade que, entre Realidades y Sueños nos va encandilando poco a poco y nos hace reflexionar sobre la condición humana y los entresijos de las imprevisibles Pasiones que envuelven al Ser Humano y, más en concreto, en la condición de Hombre.
    Abraços e Beijos.

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    1. Oi, Pedro Luis, é verdade, algumas histórias de vida condicionadas pelo seu momento histórico nos causam uma certa estranheza, em princípio, mas depois refletindo melhor, existem certas situações
      emocionais que mesmo aparentemente absurdas podem nos levar a perceber a complexidade das emoções humanas e dos comportamentos que geram. E quem somos nós para julgar...
      Um abraço

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  5. Olá Guaraciaba.

    Drummond é mesmo incrível de se ler.
    Uma beleza de texto poético. Li como se estivesse lendo um romance e desejando conhecer logo o seu final.
    Absolutamente envolvente.
    Eu, provavelmente, não teria tanta nobreza de receber aquele marido de volta como se nada tivesse acontecido.
    Gostei muito da oportunidade de fazer essa leitura.
    Muito linda a música de Bethania, que tem uma voz maravilhosa.

    Feliz semana.

    Beijo.

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  6. Oi, Vera...é verdade...é como um conto envolvente e enquanto vamos lendo vamos fazendo pensando e cá entre nós julgando ser impossível a mulher aceitar tudo aquilo e que só pode ter sido em outro época, etc. etc...mas depois vamos vendo o desenrolar da história e pensando em tantas histórias reais vamos "abaixando a bola" e
    pensando que esta história pode ser até bem verdadeira para ambas personagens desse conto poesia.
    Um abraço

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  7. Palavreado poético, super original, que prende nossa atenção do começo ao fim. Claro, gostei!
    Guaraciaba, beijos!

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    1. Oi, Shirley,...um poema de Drummond diferente dos demais e surpreende.
      Um abraço e tudo de bom e de bem.

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  8. Não faz muito tempo que eu li a A Dona do Vestido, quando tive em mãos a Antologia Poética, na biblioteca escolar onde eu trabalhava. Mas hoje, revisitando o poema descobri mais...nas entrelinhas. Nunca poderia imaginar duas pérolas assim, de uma "tacada" só. Interessante, sentir o paralelo dessas duas mulheres! Parabéns, Guaraciaba, pela feliz ideia. Gostei! Meu abraço!

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    1. Oi, Lúcia, não me lembro de ter lido A Dona do Vestido...fiquei bem interessada e vou procurar. Este conto poético eu gostei demais pois podemos fazer muitas reflexões que nos levam ao passado e de repente perceber que apesar de tanta modernidade a submissão feminina ainda é muito dolorida.
      Um abraço

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  9. Minha cara! Carlos Drummond, Chico Cesar e Maria Bethania já é covardia, não acha? Desculpe a brincadeira, gostei muito!

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    1. È verdade...mas é o que temos de melhor e em consonância com um tema bem profundo.
      Um abraço

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  10. Desconhecia o caso do vestido...é caso sério.

    Amei a partilha.

    Beijinhos

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