Um montão disforme. Taipas e pedras,
abraçadas a grossas aroeiras,
toscamente esquadriadas.
Folhas de janelas.
Pedaços de batentes.
almofadados de portas.
Vidraças estilhaçadas.
Ferragens retorcidas.
Abandono. Silêncio. Desordem.
Ausência, sobretudo.
O avanço vegetal acoberta o quadro.
Carrapateiras cacheadas.
São-caetano com seu verde planejamento,
pendurado de frutinhas ouro-rosa.
Uma bucha de cordoalha enfolhada,
berrante de flores amarelas
cingindo tudo.
Dá guarda, perfilado, um pé de mamão-macho.
No alto, instala-se, dominadora,
uma jovem gameleira, dona do futuro.
Cortina vulgar de decência urbana
defende a nudez dolorosa das ruínas do sobrado
- um muro.
Fechado. Largado.
O velho sobrado colonial
de cinco sacadas,
de ferro forjado,
cede.
Bem que podia ser conservado,
bem que devia ser retocado,
tão alto, tão nobre-senhorial.
O sobradão dos Vieiras
cai aos pedaços,
abandonado.
Parede hoje. Parede amanhã.
Caliça, telhas e pedras
se amontoando com estrondo.
Famílias alarmadas se mudando.
Assustados - passantes e vizinhos.
Aos poucos, a "fortaleza" desabando.
Quem se lembra?
Quem se esquece?
Padre Vicente José Vieira.
D. Irena Manso Serradourada,
D.Virgínia Vieira
- grande dama de outros tempos.
Flor de distinção e nobreza
na heráldica cidade.
Benjamim Vieira,
Rodolfo Luz Vieira.
Ludugero,
Angela,
Débora, Maria...
tão distante a gente do sobrado...
Bailes e saraus antigos.
Cortesia, Sociedade goiana.
Senhoras e cavalheiros...
- tão desusados...
O Passado...
A escadaria de patamares
vai subindo...subindo...
Portas no alto.
À direita. À esquerda.
Se abrindo, familiares
Salas ,antigos canapés.
Cadeiras em ordem.
Pelas paredes forradas de papell,
desenhos de querubins, segurando
cornucópias e laços.
Retratos da antepassados,
solenes, empertigados.
Gente de dantes.
Grandes espelhos de cristal,
emoldurados de veludo negro.
Velhas credências torneadas
sustentando
jarrões pesados.
Antigas flores
de que ninguém mais fala!
Rosa cheirosa de Alexandria.
Sempre-viva. Cravinas.
Damas-entre-verdes.
Jasmim -do-cabo. Resedá.
Um aroma esquecido
- manjerona.
O Passado...
O salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
"Clube Literário Goiano"
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.
Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo atentas a leitura da ata.
Levantando idéias geniais.
Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.
O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos.
D.Virgínia. Benjamim.
Rodolfo. Ludugero.
Veros anfitriões.
Sangrias, Doces. Licor de rosa.
Distinção. Agrado.
O Passado...
Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
desviam-se com prudência.
que importa a eles o sobrado?
Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
- Que vale para eles o sobrado?
Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?
e o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?
E vão fugindo do sobrado.
aos poucos,
os quadros do Passado.
CORA CORALINA (in POEMAS DOS BECOS DE GOIÁS E ESTÓRIAS MAIS)
A querida Cora Coralina nos deixa como herança esta crônica em forma de poesia de um passado que se perdeu nas dobras do tempo...obrigada Cora Coralina que nunca se perderá em sua sabedoria.
ResponderExcluirUma bela poesia e ouvi-la com Abismo de Rosas é ainda melhor.
ResponderExcluirAbraço.
Oi, António... de fato uma linda lembrança de um outro momento, mais ameno talvez, e Abismo de Rosas sublinha esse tempo.
ExcluirUm abraço
Lindo demais Guaraciaba.
ResponderExcluirCoralina escrevia com sua alma de grande poetisa.
E essa música é linda de viver.
Adorei
Bjs e obrigada pela visita.
Carmen Lúcia.
Oi, Carmen... Cora Coralina fala ao nosso coração ...ler sua poesia é como voltar às nossas raízes. A música Abismo de Rosas nos ajuda a sentir saudades do que não vivemos.
ExcluirUm abraço
Que delícia imaginar o cenário ouvindo essa música,percorrer tudo num afã de socorrer cada parede, cada
ResponderExcluirpeça, cada quadro e momentos,
Muito lindo!
bjs.
Oi, Lourdinha....a sensibilidade de Cora Coralina perpassa todo o seu trabalho...nos faz viver lá e é tão real como se estivéssemos vivendo uma outra vida. No livro citado ela perpassa sua própria vida e a história de uma Goiás antiga e colonial....é um livro belíssimo que guardo como um tesouro.
ExcluirUm abraço
Olá amiga,
ResponderExcluirCora Coralina e seus belos poemas! Tenho enorme admiração por essa mulher, forte, simples, grande poetisa... que viveu sem medo de enfrentar a vida. Nos deixou um legado fascinante, exemplo de força e sabedoria!
Excelente escolha, parabéns!
Beijo.
Obrigada, Ilca...concordo plenamente e tenho Cora Coralina como grande exemplo de mulher além de de grande poeta.
ResponderExcluirUm abraço, paz e Amor.
Oi Guaraciaba,obrigada pela visita e comentário.
ResponderExcluirBjs e um ótimo final de semana.
Carmen Lúcia.
Obrigada Carmen, pelo carinho...Um grande abraço
ExcluirLindo. O poema e a música.
ResponderExcluirBom fim de semana.
Beijo.
Nita
Obrigada , Nita, pela visita e comentário.Uma semana de paz e amor.
ExcluirUm abraço
Que fabulosa visita fiz hoje ao Solar dos Vieira, levada por Cora Coralina! Quantas mansões tenho visto tombar em minha cidade...e a dor é enorme. Fiquei deslumbrada com a narração impar da grande poetisa goiana.A chave de ouro, fechou a belíssima postagem com o inigualável Dilermano Reis. Que manhã de sábado divina tive hoje! Obrigada, Guaraciaba. Carinhoso abraço...
ResponderExcluirOi, Lúcia...realmente Cora Coralina , além de poeta é uma excelente memorialista e consegue descrever com tão realismo que é como se estivéssemos vivendo aquele momento já histórico.Eu não me canso de ler o livro citado" Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais" prêmio Juca Pato de 1984. Ganhei o livro de uma colega professora em 1985 e me apaixonei pela história e pela poesia de Cora Coralina. A música é um clássico que já era um clássico quando éramos crianças (rs) mas é linda ,não?
ExcluirUm abraço (fico feliz por ter gostado)
Querida Guaraciaba, chorei ao ouvir Abismo de Rosas. Meu pai tocava sempre essa música, não com a perfeição do Dilermando, mas, tocava e esteve agora, tão presente no meu coração...
ResponderExcluirBeijos!
Oi, Shirley...que bom ! a música tem o dom de nos trazer de volta o passado com suas lembranças e os nossos seres amados... fiquei feliz!
ResponderExcluirUm abraço , Paz e Amor.
Ela nos remete aos sentimentos vívidos! Divina Cora Coralina!
ResponderExcluirhttp://ives-minhasideias.blogspot.com.br/
Oi, Ives...concordo plenamente.
ExcluirUm abraço
Olá Guaraciaba,
ResponderExcluirA música é quase um lamento pelo abandono desse velho sobrado.
Que poemaço!
Cora nos faz ver esse casarão, ora em destruição, ora em plena vida.
Quantas histórias deveriam conter suas paredes!
Há casarões que nunca deveriam ser destruídos pelo tempo, mas recuperados e transformados em patrimônio histórico e/ou cultural.
Ótima postagem.
Beijo.
Oi, Vera...é verdade...aqui em São Paulo existem ainda alguns casarões do princípio do século que estão praticamente abandonados...muitos viraram cortiços ,outros em aguardo de tombamento histórico e alguns poucos preservados como centros culturais.Toda opulência transformada em pó e do ponto de vista histórico uma perda, transformada em estacionamento de automóveis.
ResponderExcluirUm abraço
Olá Guaraciaba,obrigada pela visita e vibrações positivas à minha saúde.
ResponderExcluirGraças a Deus estou bem
Bjs amiga e um ótimo final de semana.
Carmen Lúcia.
Oi, Carmen ...fico feliz com sua recuperação...tudo de bom e de bem!
ExcluirUm abraço
Cora Coralina e Dilermando Reis - obrigada por tanta beleza juntas. Um abraço gaúcho. Ana
ResponderExcluir